Criação e criatividade têm a ver com trazer para o plano material algo que,
hoje, encontra-se naquilo que Platão chamou de Plano das Idéias. Fugindo um
pouco da conceituação platônica deste plano Ideal, que em muito se assemelha à
proposta cristã de Paraíso, vamos tentar entender este Mundo das Idéias como a
nossa própria mente, e sua capacidade de acessar novas possibilidades.
Para tornar mais nítido meu entendimento desta transição entre o existente e o
imaterial, e o papel do criativo nesta equação, vou utilizar de uma pequena
metáfora: Imagine que o mundo em que vivemos, aquilo que é externo a nós e,
portanto, existe, é uma ilha cercada por um oceano fluído, vibrando em ondas de
possibilidades. Entre estas duas regiões — o Oceano do Possível e a Ilha do
Existente — reside o Criativo.
Aquele pequeno bangalô de madeira, na beira do mar (dependendo da maré, dentro
dele!), com uma rede confortável e laranja, para contrastar com o azul do mar e
impulsionar ainda mais a criatividade, bem iluminada por luz natural, cercada
pelo relaxante som das ondas se quebrando constantemente e com aquele aroma
misto de madeira e maresia. Sim, é claro que num cenário desses não poderia
faltar uma cozinha repleta de frutos do mar fresquinhos e um bom vinho branco
gelado, para aguçar ainda mais o paladar.
Ali reside o Criativo em sua expressão máxima. Entre o Existente e o Possível, com
todos os seus sentidos aguçados, ele torna-se capaz de captar no ar e nas ondas
do mar, as novas possibilidades, e enxergar com maior distinção a direção em
que sua ilhota pode expandir.
É assim que tem sido com Da Vincis, Picassos, Niemeyers, Corbusiers e outros
grandes artistas ao redor do mundo, seja qual for sua área: Na pintura, nas engenharias,
na poesia, arquitetura, dança, música, finanças, tecnologia, ciência, medicina...
Em todas as áreas do Desenvolvimento Humano, é preciso estar às margens do
Oceano do Possível, preferencialmente virado para ele, para abstrair as terras
existentes e planejar o que há de vir, que é o verdadeiro papel do artista na
sociedade.
Há certa confusão na ideia de que Criativos são artistas. Quando digo certa
confusão, quero dizer que realmente, todos os Criativos são artistas, a
confusão reside apenas na definição de Arte e artista. Para esclarecer melhor
um pouco esta fundamentação, recorro à origem etimológica da palavra Arte,
conforme expressada pelo filósofo brasileiro Huberto Rohden.
Em seu livro Filosofia da Arte, Rohden explica que a palavra Arte advém do
latim Ars, que significa Técnica, Saber, Conhecimento. Arte é, portanto, toda
forma de conhecimento e técnica. Artista é aquele que detém um conhecimento ou
técnica sobre uma determinada área. Portanto, todos são artistas à sua maneira.
O que diferencia então profissionais brilhantes de bons profissionais? Se
escrevi este artigo direito, a resposta para essa pergunta já está na ponta da
língua de você, leitor (ou pelo menos às margens de sua cabeça!). Esta
diferença está na capacidade de viver no limiar entre o Existente e o Possível.
As arte — ou técnicas — para desenvolver esta capacidade são incontáveis. Cada criativo
desenvolve a sua, e esse tipo de elaboração é extremamente individual.
Para mim, por exemplo, privação de sono é algo que funciona perfeitamente.
Quando passo uma noite em claro, além de produzir muito melhor durante a noite
(sou notívago declarado), passo a manhã toda em um estado de plenitude
criativa. É muito difícil expressar o que sinto, visto que não se trata de algo
palpável, que possa ser percebido e descrito, mas é como se eu tivesse dado um
mergulho neste Oceano do Possível.
Nessas manhãs, parece que tudo é claro, nítido, passível de ser desenvolvido
sem dificuldades e que tudo funcionará perfeitamente quando eu trouxer à terra
firme. Então eu volto para a Ilha do Existente trazendo comigo a nova possibilidade,
e aquela textura palpável e nítida, que aparentemente funcionaria tão bem,
escorre por entre meus dedos e penetra a areia, retornado diretamente para o
Oceano do Possível.
São as leis distintas de cada uma dessas regiões: O Oceano, onde nos sentimos
leves a ponto de flutuar e a matéria é fluída a ponto de nadarmos nela, e a
Ilha do Existente, com sua borda arenosa que absorve qualquer espécie de
fluidez e leveza e um centro cada vez mais denso e impenetrável. Entra então em
questão a Ars Praxis, termo do latim para a Ação ou a Prática daquele
conhecimento citado anteriormente.
Você foi e viu: mergulhou no dito oceano de possibilidades e conheceu seus
belos peixes e corais, sentiu seu frescor e suas correntes passando pelo seu
corpo. Agora, é preciso sedimentar os sais minerais presentes nessa água e,
dessa forma, materializar as possibilidades, tornando-as, então, existentes.
É a hora do trabalho duro, de aparar arestas e desenvolver aquilo que foi visto
no Oceano do Possível seguindo as leis da Ilha do Existente. A proposta se
transformará. No decorrer do processo, pode haver frustração, ao perceber que a
estrutura existente no Oceano do Possível não pode ser integralmente construída
nesta dura ilha em que vivemos, mas é necessário compreensão de que as leis que
regem estes dois mundos, como já dito, são diferentes e, portanto, nenhum deles
será igual ao outro.
É neste sentido que me referi ao Mundo das Idéias de Platão logo na introdução
do artigo. Também nele a forma original é perfeita e o produto obtido dela, uma
mera imitação, cheia de imperfeições e incompletudes. A boa adaptação das
possibilidades encontradas no oceano, portanto, é que determina um profissional
brilhante, em qualquer que seja sua área.
Dentre todas as artes, enxergo na arquitetura, talvez por ser a minha, a que
vive sempre neste limiar. Um artista como Picasso, pai do Cubismo, pode
produzir seu Guernica, tendendo ao máximo à desconstrução e turbidez geradas
pelo movimento das águas do Oceano do Possível. Já Frank Gehry, grande
arquiteto desconstrutivista, não poderia erguer seu prédio para o Museu
Guggenheim em Bilbao se este não cumprisse, acima de tudo, sua função
expositiva e administrativa.
Ambas as formas são abstratas, tiradas quase que em sua expressão total do
conceito original, dentro do Oceano do Possível, mas apenas Gehry adicionou à
sua Obra-Prima a Funcionalidade característica da Ilha do Existente. Um
arquiteto, portanto, vive no estado de tensão entre a beleza fluída das
diversas possibilidades e a sensatez palpável da função. Algumas escolas defenderam
a forma sobre a função, outras, a função sobre a forma.
Na minha balança, ambas precisam coexistir em equilíbrio perfeito para que a Arquitetura
e o Design possam atingir sua expressão máxima. Forma e Função num estado de
tensão constante, contrabalanceado uma à outra para obter um resultado belo e
exequível dentro das necessidades e possibilidades econômicas do cliente.